Mensagem do Grupo de Discussão Ciência Cognitiva

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Ciência Cognitiva - http://sites.uol.com.br/luzardo

From: Joaquim Rosa Neto <JOAQUIMRN@TCU.gov.br>
>
> Todavia me arrisco a dizer, pelo que pude constatar, que o principal alvo
de
> Pinker -no sentido de causar estrago- é o tabu da cultura, e talvez da
> própria racionalidade humana. Defende que a cognição humana (capacidades
de
> percepção, generalização, abstração e inferência) é fruto de um projeto
> entabulado em nível genético e que teria a tutela fundamental de um
> "imperativo de replicação".

Bem-vindo, Joaquim, à lista de discussão.
Pinker é realmente um autor notável. Estou agora na metade de seu
novo livro 'Words and Rules', e admiro muito sua forma de exposição.
Até o ponto onde estou neste livro, concordo com você que ele faz um
grande 'estrago' nas teorias de seus concorrentes e também concordo
com muito dos argumentos que ele usa. É realmente um autor dotado.

Mas quando o assunto transcende as análises mais linguísticas, tenho
minhas diferenças com ele. É inevitável que haja forte influência
genética nas características cognitivas humanas. Mas não se pode
exagerar nisto, pois corre-se o risco de esquecer o quanto somos
moldados pelo meio ambiente. Muito de nossas estratégias cognitivas
e de raciocínio são diretamente derivadas de fortes influências
sociais e culturais. E o ponto onde isto é mais visível (também meu
maior ponto de discordância com Pinker) é relativo à origem da
linguagem. Pinker (e muitos outros cientistas cognitivos) assumem
que linguagem é algo inscrito nos genes, que nós humanos somos
todos privilegiados por possuir essa característica. Não há
evidências conclusivas que suportem essa hipótese. Boa parte dos
neurocientistas e dos cientistas cognitivos afeiçoados aos modelos
conexionistas discordam de Pinker. Mas, mesmo após muitas batalhas,
essa guerra ainda está longe de terminar.

Só para dar um exemplo "estranho" do que acho mais razoável, veja
esta estória. Imagine que um desses 'bandidos de carteirinha',
um sujeito com índole má, agressivo e sem respeito pela vida
humana, vá assaltar um alto executivo do mercado financeiro.

Esse executivo, rico e famoso, não foi sempre assim: teve que
lutar muito, veio de família pobre mas, devido à sua perseverança
e força de vontade, conseguiu otimizar sua situação e vencer na vida.

O bandido se sente ultrajado pela condição social de sua vítima
e esta, durante o assalto, esboça um sinal de reação. Resultado:
os dois entram em conflito corporal e o assassino vilmente tira
a vida do executivo.

Agora mudamos o cenário. Estamos em uma invasão vicking, há
muitos séculos atrás. Nesse mesmo cenário temos os "equivalentes
genéticos" das duas pessoas da estória anterior. O que era
o executivo financeiro é agora o chefe dos vickings, alguém que
devido a sua destreza e força de vontade, superou seus inimigos.
O que era anteriormente o assassino é agora um dos soldados do
grupo adversário. Suponhamos que da última batalha só tenham
restado os dois. Quem seria o vencedor de um confronto
corpo-a-corpo entre eles? Eu aposto no "executivo vicking".
Conclusão: há material genético diferente, mas a potencialização
desse material depende fundamentalmente do ambiente.

> A partir daí, prezado amigo, realizei-me em um território que todo o
> devaneio é possível, onde a filosofia passa a ser, inevitavelmete, um
> referencial, embora não conclusivo. Primeiro, levantei  nesta lista a
> questão da existência de uma finalidade na natureza, o que remeteria, a
meu
> ver na admissão ontológica de um criador. Contribuições significativas de
> Luzardo e Navega fizeram o assunto enriquecer bastante, alegando o
primeiro
> que "regularidades na natureza" não dariam suporte a uma concepção
> criacionista e o segundo, admitindo que o elemento "intencionalidade"
daria
> substrato à concepção.


Aqui também temos assuntos que ainda não estão assentados de forma
consensual. Quando se fala de intencionalidade, deve-se falar também
de causalidade. Uma das coisas que nós humanos mais prezamos é a noção
de causa e efeito. Tudo o que observamos achamos que tem uma "causa",
e em grande parte a ciência moderna está atrás da descoberta de
causas plausíveis para os fenômenos naturais. Isto é certamente útil,
mas tem seu lado ruim.

Causalidade é algo que pode ser visto como sendo um artifício de nossa
mente, algo que usamos para auxiliar nosso entendimento do universo.
Na realidade, podemos estar nos iludindo (não, não sou Zen-Budista!).
O conceito de causa e efeito não é simples, embora sempre tentemos
fazê-lo simples. Ao acendermos um fósforo e aproximá-lo de uma folha
de papel, esta queimará. Se perguntado qual foi a causa da queima da
folha, dispararemos uma explicação sóbria: o calor da chama fez o
papel incendiar.

Agora veja: esta explanação não é satisfatória nem "acima" nem
"abaixo" do nosso nível de análise.

Nível "abaixo": chama, calor, etc são conceitos que não se aplicam
se estivermos analisando esse fenômeno do ponto de vista quântico:
há interações entre elétrons, núcleos atômicos, mudança de
níveis de energia de elétrons, fótons na região do infravermelho,
etc, que podem ser mais adequados à explanação do que realmente
ocorreu quando o fósforo se aproximou da folha. Obviamente, isto
não para aqui, se descermos ao nível dos quarks.

Nível "acima": essa folha pode estar em um arquivo de um departamento
do governo que tenha sido atacado por um incêndio criminoso. Portanto,
a causa da queima foi a intenção do meliante de destruir provas que
incriminassem a si ou aos seus contratantes. Mas então qual é a
causa da queima da folha?

É assim que podemos dificultar as análises mais tradicionais de
intencionalidade: se "descermos" de nível explanatório encontraremos,
na realidade, apenas interações quânticas de partículas. Se subirmos
somos obrigados a criar "noções fictícias" que, embora úteis, podem
não ter correspondente material. Há alguns cientistas (entre eles,
Marvin Minsky) que usam idéias como essas para descartar a existência
de noções como o livre arbítrio (free will). Mas isto é outro
capítulo dessa nossa ciência cognitiva.

Até mais,

____________________________________________________________
Sergio Navega
http://www.intelliwise.com/snavega


Ciência Cognitiva - http://sites.uol.com.br/luzardo

From: Joaquim Rosa Neto <JOAQUIMRN@TCU.gov.br>
> Sergio wrote:
> >[snip]
> > É assim que podemos dificultar as análises mais tradicionais de
> > intencionalidade: se "descermos" de nível explanatório encontraremos,
> > na realidade, apenas interações quânticas de partículas. Se subirmos
> > somos obrigados a criar "noções fictícias" que, embora úteis, podem
> > não ter correspondente material. Há alguns cientistas (entre eles,
> > Marvin Minsky) que usam idéias como essas para descartar a existência
> > de noções como o livre arbítrio (free will). Mas isto é outro
> > capítulo dessa nossa ciência cognitiva.
>
>                     Creio que o tema tem a ver com o paradoxo da
> racionalidade proposto por David Hume, cujo substrato está justamente na
> constatação deste filósofo de que a experiência, a rigor, não abona o
> princípio da causalidade. Para ele, como exemplo, não existe um elo
> conectivo experimentalmente observável que propicie a certeza de que uma
> chaleira ao fogo fará a águal nela contida ebulir. O que existe, segundo o
> mesmo, é uma noção de causalidade contida em nós mesmos, constituída a
> partir da repetição, sem a qual não se poderia sobreviver.

É isso mesmo, Joaquim! Em especial, sua referência a coisas que se
repetem parece estar na essência desse processo. Mas é aqui que me
afasto um pouco do que Hume pensava.

Hume era um crítico dos processos indutivos. Indução (assumir que o
que ocorreu no passado deve ocorrer também no futuro) é um método
fraco e frequentemente sujeito a erros. Mas é a única coisa que
podemos usar quando nada mais temos em nossas mãos!

Posso me considerar afeiçoado aos empiricistas. Mas diferentemente
dos empiricistas mais radicais, não acho que os racionalistas
estejam totalmente errados.

A questão envolve os dois princípios em doses adequadas. Os
racionalistas e platonistas (como Pitágoras) dão importância
apenas ao raciocínio dedutivo, que é forte, perfeito e certificável.
O raciocínio dedutivo teria, dizem eles, tudo para ser a única
estratégia que deveriamos usar. Mas a grande questão do
racionalismo é a obtenção de "antecedentes": só posso concluir
algo dedutivamente se disponho de um razoável conjunto de
premissas. Sem premissas, não temos como concluir nada!

Então, minha pergunta aos racionalistas é esta: De onde vem
as premissas? Nascem conosco? Brotam espontaneamente?

A indução nos fornece premissas! Elas podem ser falsas, podem ser
fracas e imperfeitas, mas é a única coisa que podemos usar para
*iniciar* o processo de refinamento progressivo (que frequentemente
emprega métodos dedutivos). Então, a guerra entre racionalistas
e empiricistas está mal posta: isoladamente, nenhum deles pode
resolver muita coisa, mas em conjunto eles providenciam uma
forma de obtermos visões "sucessivamente melhores" do mundo
que nos cerca. É isto que a Inteligência Artificial (meu
principal interesse) também deveria buscar.

Isto tem tudo a ver com a noção de causalidade. Também usamos
indução para determinar causalidade. Se um evento B sempre ocorre
após um evento A, é natural que tentemos inventar um "link" causal
entre A e B. Os críticos da indução apontam para a fragilidade
disso (afinal, como dizem os estatísticos, correlação não é
causalidade). É óbvio que essa constatação é na maioria das
vezes falsa e sem fundamento.

Mas quem falou que essa constatação A -> B é o final da
história? Ela é apenas o começo, algo que será submetido a
confirmações experimentais e integração com outros modelos
teóricos e raciocínios formais de forma a também poder melhorar
progressivamente. Frequentemente descartamos relações causais
erroneas por causa desse método. Mas as relações causais
"corretas" também nascem do mesmo processo.

>                    Evidentemente, ao senso comum, trata-se de uma noção
> estéril, pois causa-efeito é algo absolutamente imanente aos seres,
> principalmente aos homens. Todavia, estando franqueados os debates sobre
> cognição, parece-me adequado abordar sobre os pressupostos do que se tem
> como intocável: a validade das ciências empíricas.

Esse ponto que você levanta é, novamente, importante. Qualquer ciência
que se atenha simplesmente a modelos empíricos e preditivos é, em geral,
fraca. Isto vem de um outro ponto que também costuma gerar muita
discussão: Qual é a finalidade da ciência?

Há os que dizem que a finalidade da ciência é predizer o futuro.
A primeira lei de Newton, f = m.a , é justamente isso: uma lei que
prediz o futuro. Ela diz que se aplicarmos uma força 'f' a uma
massa 'm' obteremos uma aceleração 'a'.

Mas isto não é suficiente: a ciência deve também *explicar* as
coisas, e isto envolve fazer modelos do mundo e testá-los na
prática. É este detalhe que frequentemente separa a ciência de outras
"disciplinas" pseudo-científicas como astrologia, numerologia, etc.
A ciência real também se preocupa em explicar como as coisas funcionam
e estão sempre abertas a rever seus modelos e pressupostos a partir
de experiências que falsifiquem seus pressupostos.

Até mais,
Sergio Navega


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