Capítulo 4

Trechos do Livro
Pensamento Crítico e Argumentação Sólida

@ Copyright 2002 Sergio Navega

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O Perigo do Óbvio

É fácil notar que o óbvio tem problemas e perigos. O que é óbvio para alguém pode não ser para outra pessoa. Como vimos, o óbvio é um resultado natural do senso comum que construímos desde nossa infância.

O óbvio é útil pois serve, na verdade, para que uma discussão possa passar adiante mais rapidamente, evitando emaranhar-se em uma rede de detalhes que nada tem a ver com o ponto em questão. Por isso, noções óbvias são constantemente relevadas a segundo plano em discussões sobre ciência e matemática. Podemos creditar parte da "naturalidade" do óbvio àquela carga de conhecimentos que as pessoas desenvolvem por habitarem, desde que nasceram, o mesmo mundo, sujeito às mesmas regras naturais (gravidade, permanência de objetos, etc). Assim, não precisamos falar para ninguém que para entrar em uma sala você deve antes abrir a porta.

Mas o óbvio precisa ser consensual, ou seja, em um debate ambos os argumentadores devem concordar com sua obviedade. Caso um não concorde, então é hora de o oponente argumentar (justificar) em favor do conceito que se tem dúvida. Isto é óbvio, não é?

Os problemas com o óbvio costumam aparecer frequentemente quando a discussão se dá entre um leigo e um especialista -- um paciente e seu médico, por exemplo. O óbvio para os especialistas muitas vezes não é óbvio para os leigos. É essencial que o especialista tenha em mente que o leigo pode não estar ciente de certas noções que são, para ele especialista, claras. É obrigação do especialista usar linguagem e conceitos que providenciem compreensibilidade de suas idéias. Isto é importante não apenas nos casos de especialistas versus leigos, mas também nos casos de pessoas com quase o mesmo nível de conhecimentos, sujeitos apenas a experiências diferentes. Ao relatar uma experiência a outra pessoa, é preciso que "simulemos" em nossa mente aquilo que o colega deve ter na sua. Isto nos permitirá enviar, além do essencial da informação, todos os detalhes que faltam para a correta compreensão do assunto pela outra pessoa.

Repetição Não Transforma Algo Em Verdade

Não é difícil encontrarmos pessoas que confundem a verdade de uma proposição com o número de vezes em que essa proposição é dita ou lida. Como veremos no próximo capítulo, algumas falácias ocorrem justamente desse impulso de achar que algo é verdadeiro só porque foi repetido à exaustão. Como exemplo, posso simplesmente falar para você o seguinte:

"As árvores são seres conscientes"

Esta é uma proposição simples, cuja verdade não é óbvia. Talvez possamos até dizer que é óbvio o oposto do que a frase diz. Assim, se não é óbvia e se não contém nenhuma sustentação -- razões, evidências, fundamentações -- a seu favor, tomada de forma isolada essa frase não parece ter muito valor. No entanto, se você repetir isso seguidas vezes, se ler isso em um livro, depois em um artigo de uma revista qualquer, depois escutar isso em uma palestra qualquer, etc., você poderá achar que se trata de uma "verdade".

No entanto, em nenhuma dessas circunstâncias é dado um suporte razoável para essa alegação. A idéia foi apenas repetida, talvez com palavras ligeiramente diferentes, mas com o mesmo sentido, a mesma intenção semântica. Ou seja, com a mesma falha de suporte que possuia quando lemos a frase pela primeira vez.

Apesar disso, a repetição é usada e abusada em muitos dos chamados livros de "auto-ajuda", aqueles títulos que hoje são abundantes nas prateleiras de nossas livrarias. Um exemplo típico deste caso foi detectado pelo jornalista Marcelo Coelho, quando comentou sobre o livro "Limites sem Trauma":

"O uso da repetição parece corresponder a várias necessidades. A primeira, certamente, é a de transformar meia dúzia de ensinamentos triviais em um livro de mais de 150 páginas. Outra razão para insistir na mesma idéia é a de que, no fundo, esse tipo de livro funciona mais ou menos como um mantra na cabeça do leitor. Ele já sabe o que o livro contém; a simples repetição o reconforta"

A quem serviria esse tipo de livro que abusa da repetição de trivialidades? Novamente Coelho parece estar certo:

"Como tantos livros de auto-ajuda sobre os mais variados temas, esse manual dirige-se a um leitor infantilizado, a quem pretende educar para o óbvio com infinitas doses de paciência"

Uma leitura com frases óbvias pode seduzir por não requerer do leitor nenhum pensar, nenhuma dose de crítica ou de esforço de interpretação. Está tudo lá, explícito, inexorável e . . . óbvio.

Alguns leitores poderiam reclamar, então: Qual é o problema disso? Afinal, se são frases óbvias e se servirem para o deleite do leitor, não estariam elas cumprindo uma função de entretenimento ou de mínimo reforço à educação? Não estaria esse tipo de livro oferecendo um prazer similar ao que ocorre quando repetimos a sobremesa?

Novamente retorno aqui à questão do real significado do óbvio: se é realmente óbvio, então não nos sentimos compelidos a procurar justificação, nem a gastar "neurônios" com o que é dito. Se é óbvio, então deve ser verdade, não precisamos nos preocupar em avaliar criticamente, em testar, em ponderar, em verificar se o que foi dito é realmente verdade ou se é apenas o resultado da preguiçosa propagação de suspeitas e "intuições" infundadas. Com o tempo, esse processo desenvolve um grande número de idéias sem importância prática, típicas de conversas informais e descompromissadas.

Na próxima seção veremos de que maneira esse tipo de tática consegue encobrir problemas de argumentação e de validade racional do que é dito. O óbvio pode ser perigoso porque, surpreendentemente, pode ser construído com noções totalmente falsas.

A Prosa Típica dos Livros de "Auto-Ajuda"

De certa forma, o livro que você tem em mãos é um livro de auto-ajuda. Eu não gosto de encarar este livro dessa forma, pois certamente uma de minhas preocupações aqui é fazer você, leitor, me acompanhar em um ativo caminho de pensamento conjunto. Mas isso não costuma ocorrer naqueles livros que eu estou chamando aqui de "auto-ajuda" entre aspas, um tipo de livro que, não obstante procurar ser útil para o leitor, faz isso de uma maneira inadequada e frequentemente falaciosa.

Acabamos de ver que a repetição do óbvio é uma tática frequentemente usada e abusada nesse tipo de livro. Veremos agora que, além de serem repetidas, essas construções têm frequentemente suporte através do uso de analogias fracas, linguagem vaga e montagens ambíguas. Dão a impressão de que comunicam algo de valioso, pois frequentemente nos pegamos "concordando" com as noções que passam. Mas um pouco mais de atenção ao texto poderá revelar aspectos inusitados, principalmente aqueles relacionados à justificação de uma idéia com algo que parece óbvio mas que na verdade é apenas ambíguo e deslocado.

O resultado final desse tipo de construção é frequentemente inócuo: fica-se com a impressão de se ter lido algo sem real valor. Infelizmente, esse tipo de estrutura é muito comum, até mesmo em livros de sucesso. Casos típicos costumam ocorrer dentro de "estórias com conselhos óbvios" como esta:

O Guardião do Mosteiro
"O mestre do mosteiro precisava selecionar um novo guardião para o palácio, já que o antigo morrera. Reuniu todos os seus discípulos e bem no meio deles colocou um precioso vaso contendo uma linda e delicada flor. Falou que esse era o problema que ele tinha e que precisava ser resolvido. Um dos discípulos sacou sua espada e arrebentou o vaso e a flor com um só golpe. Esse foi selecionado como guardião, porque não se importou com a beleza do problema, se é um problema precisa ser eliminado. Foi o único a passar no teste do mestre..."
Esse texto e os trechos que seguem nesta seção são um resumo de um artigo de uma página de Roberto Shinyashiki, publicado no Fascículo No. 3 da coleção "Soluções em Tempo de Crise", Mifano Comunicações, 2000.

A estória é usada para apresentar a mensagem de que as pessoas devem se esforçar em reconhecer um problema independente de sua aparência exterior e assim atuar para eliminá-lo. Vamos ver a seguir algumas considerações que mostram porque a mensagem pode ser interpretada de forma inadequada.

Quem tem a percepção do problema?

A estória apresenta uma situação com interpretações estranhas. Nada se fala, por exemplo, sobre a habilidade do guardião em localizar um problema por sua própria percepção. Mas se enfatiza o espírito de "lealdade" ao mestre com a destruição do problema, independente de qualquer outra consideração. Esta postura conduz à idéia de "obediência cega" que, em outras palavras, significa privilegiar e visão não crítica das coisas. Fica subentendido que, se o mestre falou, é porque deve ser verdade, afinal ele é o mestre. O "melhor" dos discípulos foi aquele que não ousou sequer questionar nem entender o problema. Não parou para pensar se sua atitude, em situação tão estranha, não poderia ser pior do que não agir. Simplesmente desferiu seu golpe mortal, seguindo de forma automática aquilo que foi ordenado pelo mestre. Em outras palavras, o texto deixa implícito a mensagem "para que pensar, se alguém faz isso por nós"?

Quem é valioso, quem obedece ou quem percebe?

A concepção desse texto deixa clara a estrutura típica que queremos combater neste livro. A falta de visão crítica das coisas torna as pessoas em meros "robozinhos". No passado, as empresas contratavam funcionários que obedeciam às regras mesmo sem compreendê-las. O melhor funcionário realmente era aquele que obedecia sem questionar, fazendo tudo sempre da mesma maneira, sem errar e com precisão. Entretanto, hoje já não é mais possível que as empresas sobrevivam com essa postura. O que vale nos funcionários de hoje é a vontade e disposição de compreender os problemas, de avaliar criticamente os aspectos envolvidos e de se prontificar a alterar regras passadas para melhorar o desempenho da empresa. A essa postura complexa nós podemos dar o nome de "criatividade crítica". O texto é contrário a esta visão, age como anti-exemplo. Serviria para empresas de 40 anos atrás.

Quem fosse defender o texto poderia dizer "Ah, mas essa não é a intenção do texto, é claro que a interpretação correta é apenas sugestiva, alegórica, metafórica". Bom, isso continua a ser um demérito da comunicação, pois é uma forma de reduzir o impacto da essência do que se quer comunicar através da ambiguidade e vagueza.

Mas o texto ainda continua a explorar essa prosa ambígua e inadequada e é aqui que o perigo principal aflora. Logo após o trecho do guardião do mosteiro, vai-se argumentar sobre a necessidade imperiosa de se desvencilhar dos problemas do passado. Isto é feito através das seguintes construções:

"Um problema é um problema, mesmo que se trate de uma mulher sensacional, um homem maravilhoso ou um grande amor que acabou. Por mais lindo que seja ou tenha sido, se não existir mais sentido para ele em sua vida, deve ser suprimido. Muitas pessoas carregam a vida inteira o peso de coisas que foram importantes no passado mas que hoje somente ocupam espaço..."

Essa passagem elabora a alegação principal do texto, com a qual, admito, não há muito a discordar: temos que saber avaliar aquilo que não nos serve mais e descartar essas coisas, ainda mais se estão nos impedindo de avançar. É claramente razoável, certo?

Mas mostrar essa idéia sem argumentos e sem justificativas significa apenas apresentá-la como óbvia. Se esse é o caso, então nem precisariamos dizer nada, para que gastar papel à toa com isso? Só para repetir o que todo mundo já sabe? Entretanto, como essas afirmações podem não ser óbvias para alguns leitores, então simplesmente declará-las também em nada irá ajudá-los a acreditar em suas alegações. Quem ainda não entendeu porque devemos nos livrar do peso do passado, ainda continuará a não entender após ler o texto. Neste caso, somos céticos em relação ao que diz o texto, portanto queremos razões plausíveis que nos ajude a aceitar o ponto explicitado pelo autor.

Dessa maneira, aquilo que sinceramente esperamos em seguida a essa passagem é que o autor possa nos convencer de sua afirmação, que possa listar os pensamentos e as premissas que sustentem a verdade do que está sendo colocado. Só com isso seria possível aumentar nossa crença, caso já achemos a mensagem óbvia, ou então convencer-nos da sua validade, caso não a achemos óbvia. É isso o que intuitivamente aguardamos, mas a justificativa oferecida para essa alegação é feita através de argumentação falaciosa e de uma conclusão bastante questionável:

"Os orientais dizem: para você beber vinho numa taça cheia de chá, é necessário primeiro jogar o chá para, então, beber o vinho. Ou seja, para aprender o novo, é essencial desaprender o velho..."

Este é o principal ponto de minha crítica ao texto aqui. Localizo dois problemas nesse trecho. Primeiro, uma taça de chá não é uma boa analogia para a questão. Fica aqui uma idéia de "desperdício irracional", já que seria possível conceber outras formas de se beber o vinho sem ter que necessariamente jogar fora o chá. Mas qual a relevância dessa minha crítica? Não deveria eu tolerar essa forma de expressão? Não seria essa simplesmente uma construção literária, com beleza retórica, uma forma de ilustrar uma visão? Porque insisto em criticar isso?

Eu critico isso por causa do segundo problema, que é o maior dessa construção: esse trecho inicial está sendo usado como premissa para justificar uma conclusão ("Ou seja, para aprender o novo, é essencial desaprender o velho"). Oras, isso não é óbvio! É, na verdade, bastante questionável. Não é trivial, requer forte justificação. O resultado final é que está se usando de uma analogia imprópria e fraca para tentar providenciar algum suporte para a duvidosa idéia de que se deve esquecer o passado para acolher o futuro. Esta realmente não é uma idéia tão óbvia assim. Portanto, além de apresentar uma premissa ruim, a própria conclusão é muito questionável. Essa conclusão não parece ter nenhuma relação de implicação com as premissas oferecidas, sendo um caso clássico de non sequitur (conforme veremos no próximo capítulo). O texto ainda traz uma idéia criticável, a de que devemos jogar fora nossas experiências passadas para "ter espaço" para a entrada do "novo".

A conclusão tanto é ruim que acho muito mais plausível defendermos a idéia exatamente oposta: não devemos esquecer o passado para "dar espaço ao novo", pelo contrário, devemos mesmo é lembrar muito bem dele para podermos compará-lo com o que vier pela frente. Só temos que aceitar o novo quando esse novo se mostrar realmente melhor do que o velho. Caso esse novo não seja igual ou melhor, é recomendável ficarmos com o velho.

E para fazer isso, não é "essencial desaprender o velho" como diz o texto, mas sim é imprescindível que lembremos do velho. O pensamento crítico e racional se baseia muito na idéia de compararmos as novas idéias, teorias, hipóteses, emoções, sentimentos, intuições, etc., com aqueles que carregamos historicamente. É racional e saudável mantermos conosco aquelas idéias que sobrevivem a uma comparação lúcida, aquelas que realmente julgamos ser melhor, independente de serem idéias novas ou velhas, minhas ou suas, de amigos ou de inimigos. O texto defende a idéia de que o "novo" é sempre melhor e que deve sempre substituir o velho. Seguir este conselho à risca pode ser, em alguns casos, até mesmo perigoso.

O mais estranho de tudo isso é a imensa popularidade obtida por esse tipo de livro. É como se as pessoas procurassem por uma auto-ajuda mas não soubessem avaliar quando realmente a encontram. O sucesso financeiro dos autores desse tipo de livro é bastante para fazê-los produzir cada vez mais. Mas é interessante acompanhar o que ocorre com certos autores quando eles são pegos tentando resolver, para si mesmos, os problemas que querem ensinar através de seus livros. A americana Ellen Fein virou celebridade após lançar seu livro "As 35 regras para conquistar o homem perfeito". Pelo título, já é possível antever que se trata "daquele" tipo de livro. Um milhão de exemplares depois, Ellen escreveu o segundo volume. Já estava se preparando para o terceiro quando explode o escândalo de sua vida pessoal: ela está separada do marido há mais de um ano. Mantido em sigilo para não afetar as vendas, o episódio serve de alerta para o real significado desses livros de "auto-ajuda": são galinhas de ovos de ouro para seus autores, meros preenchedores de espaço em prateleira para seus leitores.

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