Capítulo 6

Trechos do Livro
Pensamento Crítico e Argumentação Sólida

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Uma Falácia Composta

É comum encontrarmos casos de declarações que cometem mais de uma falácia ao mesmo tempo. Um dos campeões será apresentado na próxima seção. Nesta, vamos ver uma declaração simples que comete pelo menos três atos falaciosos. O ex-governador do Piauí, Francisco de Assis Moraes Souza, conhecido como "mão santa", é caracterizado pela irreverência de seus pronunciamentos. Respondendo a uma professora que reclamava do atraso de salário, "mão santa" trouxe esta justificativa:

"Sua menstruação também atrasa"

Além da óbvia indelicadeza para com a professora, esse comentário traz à tona algumas falácias:

1. Non sequitur. Dizer que a menstruação de uma professora atrasa não tem nada a ver com o fato de o seu salário estar atrasado. Não há nenhuma relação de causalidade. Oras! Isto é tão óbvio que até uma criança saberia reconhecer.

2. Analogia Imprópria. Não é possível usar a analogia do atraso de menstruação para sugerir a idéia do atraso de salários. Basta dizer que o primeiro é involuntário, enquanto que o segundo não (é uma decisão política).

3. Apelo ao Ridículo. Talvez esta seja a principal. O ex-governador apelou para um comentário ridículo. Uma de suas intenções parece ser a de desmoralizar a pergunta da professora, como se essa pergunta fosse tão ridícula quanto "porque minha menstruação está atrasada?".

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Falácias a Favor da Publicidade do Fumo

O fumo é indiscutivelmente um dos vícios mais graves da sociedade moderna. Há centenas de estatísticas médicas sérias ligando o fumo diretamente à ocorrência de inúmeros males, entre os quais o câncer no pulmão. Mas cigarro é prazeroso para algumas pessoas e típico representante dos direitos individuais delas. Por essa razão, este é um assunto que desperta debates emocionados, pois se de um lado há a idéia de restringir sua disseminação, de outro existem as importantíssimas liberdades individuais. É muito difícil decidir por um lado dessa questão de forma absoluta.

Vários países do mundo têm tentado aprovar leis restritivas e para tal desenvolvem elaborada argumentação. Um dos casos recentes envolveu a tentativa de proibição da publicidade de cigarros, algo especialmente importante, já que se tenta evitar o aparecimento de novos fumantes. A partir dessa iniciativa, várias reações se sucederam, mas vamos aqui analisar apenas uma delas, que para nossa felicidade neste livro, está recheada de falácias. O escritor Mario Vargas Llosa recentemente posicionou-se contrário à intervenção do governo na publicidade de cigarros. Só que para defender seu ponto de vista contrário ao do governo, Vargas Llosa usou o seguinte argumento:

"O álcool e uma dieta pobre também são grandes assassinos. Deve o governo regular o que vai à nossa mesa? A perseguição à indústria do fumo pode parecer justa, mas pode também ser o começo do fim para a liberdade"

Consegui identificar sete falácias neste tão breve texto. Para observá-las uma a uma, nossa primeira tarefa será apontar que o argumento implícito nessa construção tem a seguinte estrutura básica:

Premissa,

Premissa,

Premissa

---->>

"O Governo não deve proibir a propaganda de cigarros"

A partir disso, resta-nos identificar cada uma das premissas e verificar de que maneira provêm ou não suporte para a conclusão. Veja o que podemos encontrar:

"O álcool e uma dieta pobre também são grandes assassinos."

1. Non sequitur. Dizer algo sobre o álcool e a dieta pobre em nada afeta a idéia de que não deve haver proibição da propaganda de cigarros. Não existe uma implicação lógica da premissa para a conclusão. Essa frase é equivalente a dizermos que os pneus devem ser retirados dos carros, pois eles são os culpados por não estarem freando os veículos a tempo de evitarem atropelar velhinhas lerdas atravessando a rua fora da faixa de pedestres.

2. Analogia Imprópria. Dieta pobre não possui semelhanças interessantes com o fumo; não é, por exemplo, um vício ou algo que a pessoa tenha dificuldades de se livrar (exceto nos casos de bulimia ou, é óbvio, nos casos de situação econômica de miséria!)

3. Red Herring. Tentativa de desviar o foco do problema para outros mais fáceis de atacar. Afinal, ninguém é favorável a uma dieta pobre. E qualquer tentativa de proibir a propaganda de bebidas alcoólicas poderia ser recebida com maior clamor público em contrário. Mas nada disso tem relação com o fumo, é um desvio injustificável da argumentação.

"Deve o governo regular o que vai à nossa mesa?"

4. Apelo à Emoção. Está-se apelando ao medo coletivo de o governo influir em nossas vidas, o que tem ligações com imagens terríveis de governos ditatoriais.

5. Apelo ao Ridículo. É uma tentativa de desacreditar o argumento do governo baseado em uma sugestão cômica e ridícula.

"A perseguição à indústria do fumo pode parecer justa..."

6. Acento Impróprio. A frase "...pode parecer justa..." estaria implicando que o ouvinte deve pré-julgar a proposta do governo como sendo enganadora, escondendo intenções maliciosas, escusas. Se essas intenções não são declaradas explicitamente no argumento, isto não tem importância para o argumentador, pois sua intenção é apenas sugerir.

"...mas pode também ser o começo do fim para a liberdade"

7. Descida Escorregadia. Não há como justificar que essa proibição em particular vá descambar para o total tolhimento da liberdade dos indivíduos, algo muito mais sério.

É muita falácia, não? Talvez a principal falha do argumento de Vargas Llosa seja a última, a descida escorregadia. Não é porque o governo intervém na propaganda de fumo que devamos esperar sua intervenção em todas as liberdades individuais. Este argumento não é válido nem mesmo em uma situação muito mais forte, aquela na qual, por exemplo, o governo estivesse proibindo as pessoas de fumar -- ou seja, tornando o ato de fumar ilegal. Mesmo nesse caso, sem ver quais são os argumentos do governo para fazer isso, não dá, em princípio, para descartar a questão.

Outro defeito do argumento de Llosa é que ele nada diz contra as razões que efetivamente foram usadas para suportar a iniciativa do governo. Permitir a propaganda de cigarros indiscriminadamente poderia, por exemplo, conduzir certas pessoas -- principalmente jovens menores -- a buscar o tipo de satisfação artificial apresentada nos anúncios típicos, como sensação de independência, juventude, vigor físico, relacionamento social, envolvimento afetivo, todos valores desejáveis mas sem nenhuma relação direta com o fumo. Associar esses valores universalmente aceitos com o vício do fumo pode ser considerado um abuso injustificável da publicidade de cigarros, abuso esse que conduziria jovens a aderir ao fumo por razões fantasiosas. Llosa faria melhor se pudesse estabelecer ataques sólidos a essas idéias propostas pelo governo em vez de exercitar uma retórica falaciosa.

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