Capítulo 8

Trechos do Livro
Pensamento Crítico e Argumentação Sólida

@ Copyright 2002 Sergio Navega

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Obs: Parte do tema que é tratado neste capítulo pode ser visto neste artigo

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Neste capítulo vamos abordar alguns aspectos da relação entre emoção e racionalidade. Vamos também dar uma olhada nas diversas situações em que é melhor parar de argumentar. Perceber o ponto em que é melhor recuar é uma virtude que transcende a mera racionalidade: pode ser um dos fatores que nos tornam mais sábios.

Será que é possível ser racional e humano ao mesmo tempo? Muitos consideram lógica e emoção conceitos até mesmo contraditórios. Neste capítulo vamos propor uma forma diferente de ver essa questão. Vou defender a idéia de que a racionalidade serve para dar melhor expressão às nossas mais dignas emoções, aquelas que nos fazem mais humanos. Vou defender a idéia de que a racionalidade é o que de melhor pode acontecer para que nossas emoções sejam "calibradas" para melhorar a nossa vida e a das pessoas em volta de nós. Nosso ponto de partida será compreender um pouco de nossa natureza mais essencial.

Origem Evolutiva das Emoções

A vida na Terra começou há cerca de 3,5 bilhões de anos com os procariotes, organismos unicelulares simples, que ainda hoje existem sob a forma de bactérias. Há 1,4 bilhão de anos, surgiram os eucariotes, organismos ainda unicelulares mas já com núcleo e organelas presentes (cloroplastos/mitocôndrias). Lá pelos 700 milhões de anos atrás, começaram a se formar os organismos multicelulares e a vida na Terra teve um grande período de crescimento, com peixes e répteis dominando a fauna. Foi apenas em torno de 300 milhões de anos que uma importante mudança ocorreu: dos organismos reptilianos originaram-se os primeiros mamíferos.

Os mamíferos são animais bastante distintos dos répteis. Tem pêlos espalhados pelo corpo, possuem glândulas sudoríparas e um mecanismo mais sofisticado de regulagem da temperatura corpórea. São animais de "sangue quente". O metabolismo dos mamíferos também é mais ativo do que o dos répteis e a sua alimentação, por causa disso, precisa incluir alimentos mais energéticos. Assim, dentes mais especializados desenvolveram-se. Outraimportante diferença é no tocante às mamães: glândulas mamárias cresceram e os filhinhos precisavam dispor de uma ação instintiva de sugar. Este pormenor é muito importante para nosso tópico aqui: as mamães precisavam manter um contato mais próximo com sua ninhada, e esse contato precisava ser mantido por um período mais extenso após o nascimento. Esta é a raiz de uma primeira ligação "afetiva" entre os organismos, os primórdios da emoção, talvez a relação emocional mais fundamental que existe neste planeta: a de uma mãe com os seus filhos.

Os mamíferos são, portanto, natural e necessariamente "emotivos". Mas a evolução não pára, e em seguida -- entenda-se, muitos milhões de anos depois! -- apareceram neste planeta os primatas. Uma das principais novidades dos primatas em relação aos demais mamíferos é o seu cérebro bastante desenvolvido. Uma camada adicional -- o neocortex -- é claramente distinguível e a evolução dos animais com esse "acessório" a mais providenciou uma alteração interessante de comportamento. Agora, o animal não apenas tem impulsos e emoções primitivas, bastante similares às de seus antepassados mamíferos, mas também dispõe de um sofisticado mecanismo que consegue pensar sobre como satisfazê-los. Dessa forma, passou-se a ter desejos. O Homo Sapiens, nossa espécie, é o supra-sumo desses organismos. Um animal capaz de pensar racionalmente em como atender às suas demandas instintivas e emocionais. Um animal capaz de argumentar de forma sensata com os outros de sua espécie para criar conhecimento cultural e estabelecer colaboração, levando a emoção a um estágio ainda mais elevado.

Emoções São Mais Rápidas Que a Razão

Para ter chance de sobreviver, o Homo Sapiens -- assim como a maioria dos outros primatas -- têm reações instintivas que são muito rápidas. Qualquer coisa que atravesse nosso campo visual rapidamente em direção a nós irá provocar uma instintiva e súbita reação de piscar os olhos. E, acompanhada de um estrondo, essas situações podem-nos fazer proteger nossa face com as mãos. Essas reações precisam ser muito rápidas, pois caso contrário seriamos presas fáceis dos predadores e perigos que enfrentávamos em nosso passado distante. É uma das importantes características que desenvolvemos por seleção natural.

Mas a partir de um certo momento, com a civilização reduzindo muitos dos perigos ambientais a que eramos submetidos, foi tomando força a nossa área racional, mais ponderada, e por isso mesmo, um pouco mais lenta. Essa área racional não tem "circuitos prontos" como a emocional. Para antever um certo perigo potencial -- como a nossa reação ao acenderem uma bombinha de festa junina a nossos pés -- nosso racional gasta mais tempo, pois a informação precisa percorrer um caminho neural maior do que a emoção pura. Assim, as reações instintivas -- por exemplo, a estrondos sonoros intensos -- é muito mais rápida do que nossas considerações racionais sobre isso.

É importante ter isto em mente quando temos que esboçar uma reação a uma situação dessas dentro de um debate. Nosso primeiro impulso, após um ataque maldoso de nosso oponente em que este levante a voz, pode ser pular na jugular dele, retribuindo o ataque (ou virar as costas e fugir correndo, caso ele tenha a compleição de um lutador de sumô). Mas alguns segundos de reflexão podem conceber um contra-ataque argumentativo muito mais eficaz do que a mera resposta instintiva. É a famosa tática de "contar até dez". Se para os "homens das cavernas" a reação instintiva era mais proveitosa, para nós que estamos em um meio social mais sofisticado a reação ponderada tem mais valor

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A Agressividade Não é Necessariamente Ruim

É comum ficarmos horrorizados quando vemos um ato de violência gratuita na televisão ou nos jornais. Pior ainda quando vemos isso pessoalmente, diante de nossos olhos. Não é difícil sentir-nos, ocasionalmente, bastante envergonhados de pertencer à mesma espécie que certos bandidos, assassinos, sequestradores e terroristas. Por mais que tentemos, é difícil para nós entender o que se passa na mente de uma pessoa violenta e sem nenhuma consideração pela vida humana.

Contudo, há uma grande distância entre essa nossa natural condenação à violência e a idéia de que todo instinto agressivo é ruim. Estamos a poucas décadas de podermos alterar geneticamente o ser humano. Creio que haveria consenso em relação à idéia de reduzir a violência natural do ser humano. Mas será que seria sensato extirpar de nossos genes toda a manifestação de agressividade? Creio que não seria sensato, e tento justificar porquê em seguida.

Começo procurando por uma distinção entre violência e agressividade. Todo ato de violência é necessáriamente agressivo. Mas nem todo ato agressivo é necessariamente violento. Esses conceitos significam quase a mesma coisa, mas há uma sutil diferença em uma das acepções desses termos. O dicionário lista como sinônimos de violento palavras como bárbaro, brutal, rude, bruto. Já agressivo tem como sinônimos aguerrido, belicoso, brigão, combativo. Lembre-se deste último sinônimo, é o que eu gostaria de manter no centro de nossa atenção aqui.

No começo capítulo 3, vimos que o tipo de vida que o Homo Sapiens tinha há 30.000 anos era uma vida onde frequentemente ficávamos impotentes diante da força da natureza. Debaixo de uma forte tempestade, sob o estrondo e o clarão dos raios, ficavamos estarrecidos, incapacitados, tremendo de medo. Tentávamos nos proteger como podíamos mas, infelizmente, acidentes sempre acontecem. Que tipo de reação tínhamos quando um filho nosso era fuzilado por um raio? Qual era a sensação de ver uma árvore caindo sobre nossa esposa matando-a? O que pensávamos quando o bebê que tentava nascer não estava posicionado adequadamente, causando a morte do bebê e de sua mãe? Em todos esses casos e em muitos outros, além da imensa tristeza e desespero, provavelmente sobrevinha-nos também uma imensa raiva. Uma raiva de as coisas terem de ser assim. Um ódio de sermos fracos, de não podermos fazer nada. Uma agressividade que, se aplicada na direção correta, poderia fazer com que essas coisas ruins não mais ocorressem. Mas como fazer isso?

Uma certa parte do progresso de nossa civilização deve-se certamente a essa "raiva" bem direcionada. Deve-se, portanto, ao forte desejo de não sermos vítimas impassíveis do que a natureza nos oferece gratuitamente.

Como exemplo, no século XIX uma epidemia de varíola varria a Europa. A varíola provoca mortes principalmente em crianças e idosos, uma forma horrível de morrer. Quem não se sentiria angustiado e enfurecido ao ver seus filhos tombarem ante tal moléstia? Pois Edward Jenner, um médico de um subúrbio britânico, percebeu que amas-de-leite não contraiam a varíola. Isto fez Jenner buscar obcecadamente por uma forma de combater o mal, levando-o à descoberta da vacina contra varíola, que salvou, no correr do tempo, a vida de milhões de pessoas. A agressividade com que atacamos um problema pode ser um eficaz motor para nossa racionalidade, na medida em que direcionamos essa energia para objetivos nobres e construtivos. Assim, não é conveniente simplesmente "livrarmo-nos" da agressividade, pois isto nos faria virar "ovelhas" em um mundo cheio de lobos. Temos que direcionar essa força para nos impelir para frente. Retomando a questão da alteração genética, é possível imaginar que se extirpassemos nossos instintos agressivos, isto poderia simplesmente levar a raça humana à extinção. Nós simplesmente não sabemos quais os desafios que teremos que enfrentar no futuro. É bem possível que, a exemplo de praticamente toda nossa história, tenhamos que enfrentá-los com decisão e combatividade.

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Ciladas dos Argumentadores Profissionais

Um outro momento em que pode ser mais interessante terminar com a argumentação é quando o opositor atravessar a tênue linha que separa a educação e consideração do descaso e ironia. Qualquer um dos comentários abaixo pode indicar que o oponente já atravessou para o lado da inconveniência:

"Você parece estar suando bastante. Pudera, eu também estaria, se tivesse proferido argumentos tão frágeis..."

"Você está gaguejando um pouco. Você tem problemas em admitir derrota, não tem?"

"Não se preocupe, nós entendemos que você está emocionalmente inseguro e tem grandes dificuldades em falar com coerência"

Isso pode ser indicação de que seu opositor não tem muito receio em apelar para artifícios maldosos. Não raro esse tipo de estratégia culmina com uma cilada emocional envolvente e muito difícil de escapar:

"Meu caro, não adianta negar, eu sei que você é ligado em pedofilia"

    "COMO? Que absurdo! Como você pode me acusar disso? Que provas tem disso?"

"Não fique nervoso, eu gostaria de responder a sua questão, mas considerando suas reações emocionais instáveis, acho que não seria prudente de minha parte..."

    "Que espécie de imbecil é você? EXIJO que se retrate IMEDIATAMENTE!"

"Não falei? Você está a ponto de perder seu controle emocional....só fico triste com a educação que seus filhos terão..."

Não raro aquele que faz uma acusação grave desse tipo sai ileso mesmo que não apresente nenhuma evidência a seu favor. Tudo por causa da perda de controle emocional do outro argumentador. Irritar-se -- mesmo que justificadamente, como neste caso -- revela um descontrole que faz todo o debate pender para o outro lado, não importando muito a qualidade da argumentação.

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